Era noite em Santo Antônio da Platina, município encravado entre morros no Norte ainda não tão velho do Paraná. Enquanto boa parte dos quase cinco mil moradores da cidadezinha dormia, a noitada apenas começava para alguns fazendeiros endinheirados ávidos por diversão. Eles aproveitavam os prazeres da boemia em uma casa afastada, na saída para Curitiba, a um tiro de pedra dos cafezais: a zona.
O dia havia sido atípico naquele 24 de agosto de 1954. Na descida da Rua Ruy Barbosa até a Praça da Matriz, as lojas estavam fechadas, as pessoas apreensivas. Minutos antes, o locutor Heron Domingues, a voz do Repórter Esso, anunciava a morte do presidente Getúlio Vargas. A notícia da Rádio Nacional, captada em ondas por um rádio RCA Victor, foi comemorada na casa de seo Antônio Ferreira Nascimento. Na Revolução de 1930, o comerciante que morava em Siqueira Campos, na mesma região, perdeu muito dinheiro com saques das tropas gaúchas comandadas pelo homem que ganharia o apelido de “Pai dos Pobres”.
No bordel, os homens mais instruídos discutiam política e faziam previsões sobre o futuro do país. E bebiam muito. Mas bastava os músicos começarem a tocar para que os assuntos mais sérios ganhassem ponto final. O silêncio dos espectadores só era quebrado pelo barulho seco dos copos que desciam à mesa de peroba com violência após cada tragada de uísque escocês original. Os scotches eram comprados na próspera Londrina, distante 160 quilômetros de terras vermelhas cultivadas com pés de café a se perderem de vista.

Em uma dessas viagens, desembarcou em Santo Antônio um músico negro norte-americano que mal falava português. Alheio a qualquer notícia da família, amigos e mulheres que deixou para trás em suas andanças pelo mundo, o saxofonista e clarinetista Booker Pittman encantava a plateia com seu jazz refinado. Em meio à névoa da fumaça dos charutos e cachimbos, o salão todo parava para admirar a performance quase que teatral da lenda da música, já com seus 45 anos e um bigode fino sob as grandes narinas.
Se falar português era tarefa difícil para ele, a recíproca era verdadeira. Booker virou “Buca”, quase como na pronúncia do inglês britânico. Já morava havia mais de ano na cidade. Foi contratado para tocar na orquestra de Nelson Bernardi. Tornou-se uma espécie de figura folclórica. Durante o dia, vagava de bar em bar com seu sax e juntava gente para vê-lo tocar. Os comerciantes nunca deixavam o copo dele vazio, pois o que perdiam com Buca, ganhavam com os outros. Música de primeira a troco de pinga.
Mas era mesmo das noitadas na zona que Buca gostava. Lá se sentia a vontade. Não faltava quem lhe pagasse cachaça e companhia. Alguns vinham de longe, só para ver Pittman.
Buca chegava a passar uma semana na farra depois voltava para a casa de madeira, na Rua Sete de Setembro, onde dividia o teto com os músicos Nestor, Vadico, Ari e o moderninho Jayme. O último, mais novo da trupe, foi indicado a assumir a orquestra depois que Bernardi resolveu parar.
E foi Jayme Marques Pinto que recebeu a equipe de reportagem em sua casa, à sombra dos frondosos ipês da Avenida Oliveira Motta, no centro de Santo Antônio da Platina. Apesar dos 86 anos, o compositor guarda intactas as memórias dos três anos que abrigou Booker Pittman nos fundos de seu antigo endereço, na Rua Floriano Peixoto.
Booker Pittman parava o salão
Jayme Marques Pinto se recorda do dia em que Booker Pittman apareceu na cidade. “Só tinha a roupa do corpo, um terno puído e sujo da orquestra que tocava em Londrina, e o sax. Minha mulher lavou a roupa dele e lhe serviu refeição”, contou. A estranheza com os costumes da figura de alma boníssima, como definiu, começaram logo de cara. “Você dava um prato de feijão com arroz e carne e outro com sobremesa ele misturava tudo. Era arroz, com carne, mel, melancia picada. Era um americano maluco”, sorriu ao recordar.
Ao lado de Jayme, o barbeiro Ildevan Alves Carneiro, de 75 anos, ajuda a reavivar as memórias de “um tempo que já se foi”. Ele arrisca algumas notas no trompete em que tocou o Carnaval de 1956 ao lado de Buca. Os dedos habilidosos que percorriam com rapidez as chaves, hoje se resumem ao vai-e-vem da tesoura ou do corte preciso da navalha. “Tenho que treinar mais, muito tempo parado”, avaliou a performance de Aquarela do Brasil. “Naquele tempo a orquestra era muito boa, até em Curitiba nós tocamos”, lembrou.
No cartaz publicitário da época, estampado na parede de Jayme, Buca era destacado como a atração principal. “Ele era um showman, na verdade. Não servia muito para tocar junto com a orquestra, porque não conhecia nossos ritmos. Mas ele sozinho no meio do salão com seu jazz não tinha para ninguém”, destacou Jayme. “Ele tinha a voz rouca, como a do Louis Armstrong. Cantava, rodava o sax como se fosse uma arma. Era quase um teatro. O público ficava embasbacado e sempre pedia bis, de pronto atendido”.
Mas o negro norte-americano tinha queda pelas branquinhas sul-americanas: primeiro o pó, depois o líquido. Da cocaína, Buca se livrou antes de chegar ao Norte Pioneiro, porém o vício foi substituído pela cachaça. “Dia de baile tínhamos uma pessoa tomando conta dele. Mesmo assim conseguia dar umas escapadas. Eu comprava pinga no mercado e deixava na casa dele. Era melhor que ele ir para o bar. E eram três litros por dia”, contou Jayme. “Ele era muito bom, nunca incomodava ninguém, tirava a camisa do corpo se alguém precisasse, mas tinha esse problema.”
De volta para as casas de shows
Muitas das histórias de Buca viram causos famosos na cidade. O professor Renato Chagas conta que cresceu escutando histórias sobre o música Booker Pittman. “Tinha uma que ele parecia estar sério, tocando o sax, mas de repente foi desmontando no palco. Quando foram ver, estava com canudos tomando pinga em uma garrafa de Biotônico Fontoura”. A zona também guarda muitas histórias, mas que poucos se atrevem em contá-las. Do lugar onde Buca mais gostava, Jayme Pinto e Ildevan Carneiro guardam boas lembranças. “O povo fala mal das mulheres, mas naquele tempo elas pagavam certinho”, defendeu Ildevan. “Nós tocamos muito na zona, era onde tinha o movimento na época. O cachê era garantido”, continuou Jayme.
Nos anos seguintes, com o fim da Era do Rádio e o surgimento da Jovem Guarda, as orquestras enfraqueceram. “Depois que apareceu Roberto Carlos, aquele negócio de deixar cabelo crescer, aquela frescura toda, aí acabou com tudo “, criticou Ildevan.
Enquanto em São Paulo, a Passeata contra a Guitarra Elétrica reunia os conservadores patriotas em junho de 1967, Ildevan fazia sua guerra particular contra os conjuntos de cabeludos no Norte Pioneiro. “A gente resistiu até onde deu, depois tivemos que aceitar as mudanças e formamos pequenos conjuntos, mas com violão elétrico, sem guitarra”.
Com o fim das orquestras, chegou a hora de Buca partir. “Ele morava comigo, mas já não tinha serviço. O que eu faria com ele? Foi aí que o indiquei para um francês que tinha uma boate em São Paulo. Ele voltou para as grandes casas de show para recuperar o status de melhor sax soprano do mundo”, disse Jayme.
Ophelia e a mágoa que não cicatrizou
Assim que Booker Pittman mudou-se para São Paulo, o compositor Jayme Marques Pinto também foi para a capital paulista em busca de melhores oportunidades na área musical. Segundo Jayme, hoje com 86 anos, na boate do francês trabalhava dona Ophelia, uma cozinheira. Ela tinha uma filha pequena que se chamava Eliana. Buca então se encantou com a mulher e largou o álcool. “Esse valor eu dou pra ela, pois fez o que nunca conseguimos.” As afinidades de Jayme, porém, param por aí.
Durante os primeiros anos em São Paulo, Jayme continuou amigo de Buca. “Todo fim de semana eu buscava eles para almoçar em casa. Morava na Lapa e ia até o Tucuruvi pegar eles. A boate não abria no domingo. Fazia churrasco e buscava os três.” Tudo mudou quando Ophelia fez contato com a mãe de Buca, nos Estados Unidos. “Eles foram para lá com passagens pagas. O casal retornou, mas a menina ficou, para ser criada com a avó. Depois, ela conseguiu shows importantes para ele, e se distanciaram.”
A mágoa até hoje não cicatrizou. O episódio que romperia os laços de vez com Buca ocorreu em um show de lançamento de um Long Play do músico em São Paulo. “Na entrada do teatro vi o Chacrinha e o Nelson Ned. Eles estavam conversando com Eliana. Cumprimentei ela e pedi para ver o pai dela. Ela disse que não se lembrava de mim e não deixou que eu fosse até o camarim”, lembrou em tom de tristeza. “Fui embora sem assistir o show. Depois desse dia, nunca mais falei com o Buca.”
Em 1969, recebeu a notícia que o músico estava doente e queria falar com ele. “Um médico amigo meu disse que o Buca estava escrevendo um livro e queria incluir as memórias de Santo Antônio da Platina. Resultado: não fui e a biografia dele foi toda deturpada pela Ophelia. Só mentira”, criticou, se referindo ao livro “Por Você, Por Mim, Por Nós, de Ophelia Pittman. “Por isso parente não deve escrever biografia.” Meses depois, Jayme recebeu a notícia do amigo médico que Buca havia falecido.
Admirado pelos grandes mestres
Neto de Booker T. Washington, educador e fundador de um dos maiores colégios dos EUA, Booker Pittman não seguiu a profissão do avô, nem a engenharia do pai. Puxou a mãe, professora de piano. Abandonou o clássico para se dedicar ao jazz. Nascido em 3 de outubro de 1909, em Fairmont Heights, Maryland, a 350 quilômetros ao sul de Nova Iorque, foi criado em Dallas, no Texas. Ainda garoto, comprou sua primeira clarineta. Começou cedo com as andanças: Fez parte de conjuntos em Kansas City e se juntou a Count Basie. Em Chicago conheceu Lucky Millinder, com quem viajou para a Europa.
Irrequieto, deixou Paris em 1935 com destino à América do Sul. Depois de passagens pelo Nordeste, Rio, São Paulo, Argentina e Uruguai, onde se mudou para abandonar o vício da cocaína, Pittman foi parar em Londrina, no início dos anos 1950. Atraído pela prosperidade e a agitação boêmia que girava em torno do café. Afundado na cachaça, seu novo vício, perambulava pelo centro em 1953 quando recebeu o convite para tocar em Santo Antônio da Platina. Chegou a ser dado como morto pela imprensa do Rio, mas foi redescoberto no cenário nacional e voltou para o eixo Rio-São Paulo, tocando nas melhores casas da noite.
Conheceu Ophelia, que tinha uma filha de três anos, Eliana. Ambas adotaram o sobrenome do músico. A menina tornou-se artista famosa. Pittman fez shows memoráveis com Louis Armstrong e Dick Farney. Era admirado pelos grandes mestres americanos do jazz e por brasileiros como Pixinguinha e Vinícius de Morais. Gravou dois LPs próprios, além de participações em discos de Eliana Pittman. Morreu em São Paulo dez dias depois de completar 60 anos, vítima de câncer na laringe. O corpo está enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, ao lado do túmulo de Ophelia, que morreu de leucemia em 2000.
Ilustre desconhecido para a maioria
A passagem de um dos maiores músicos do mundo por Santo Antônio da Platina é desconhecida pela maioria dos moradores. A história foi se apagando como velhas notas em uma partitura desbotada. Em uma volta pelo centro da cidade, a reportagem constatou que nem um grupo de aposentados, com seus 65 anos, sabia quem era Booker Pittman. Pudera. Quando o músico foi embora, os senhores que papeavam no calçadão eram meninotes de apenas de cinco anos.
Entre os mais jovens – dos que escutam suas músicas de forma discreta, em celulares ligados a fones de ouvidos, até os espalhafatosos agroboys, com os porta-malas erguidos, deixando à mostra os enormes alto-falantes – o nome do ídolo do jazz não faz nenhum sentido. Para eles, apenas mais algum velhote longe de alcançar a fama e o talento de Luan Santana ou Anitta.
Na Câmara de Vereadores, o antigo livro de arquivo guarda a Lei nº 04/67, assinada no dia 9 de maio de 1967, “que confere o título de Cidadão Honorário ao Sr. Booker Pittman”. Foi o quarto a receber a honraria, atrás apenas do governador da época, Paulo Pimentel, do Frei Guilherme Maria e de José Theodoro Miró Guimarães, secretário estadual de Agricultura. O título, porém, nunca foi recebido.