De todos os religiosos da história da Igreja Católica no Brasil, apenas 24 entraram para o seleto grupo de cardeais, o mais alto posto da hierarquia da igreja romana, com exceção do Papa. Eles são responsáveis por eleger o Sumo Pontífice, além de assessorá-lo em um conselho consultivo. Em cima de sua lambreta pelas ruas de São Paulo, no final dos anos 1950, o jovem padre dom Geraldo Magella Agnelo ainda não sonhava alcançar tamanha honraria.
A lista de façanhas do cardeal e arcebispo emérito de Londrina e Salvador, que morreu aos 89 anos em 26 de agosto de 2023, em Londrina, não para por aí. Além do contato próximo com o papa João Paulo II, dom Geraldo Magella também ostenta em sua biografia a criação da Pastoral da Criança, em parceria com a médica sanitarista Zilda Arns.
A iniciativa lançada em 1983, em Florestópolis, na região de Londrina, para combater a mortalidade infantil, se espalhou para todos os estados do Brasil e 22 países da América Latina, África e Ásia. A organização já atendeu mais de 2 milhões de famílias e ajudou a salvar a vida de milhões de crianças.
É de dom Geraldo Magella o texto oficial da oração de Irmã Dulce, a primeira santa brasileira. Durante sua passagem como Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, o religioso foi o responsável por iniciar o processo de canonização da freira baiana que dedicou sua vida a ajudar os doentes e os mais necessitados.
Participou ainda de dois conclaves para as escolhas dos papas Bento XVI, em 2005, e do Papa Francisco, em 2013.

Mineiro, nascido em Juiz de Fora, em 1933, dom Geraldo Magella, apesar da boa oratória, se dedicava mais a ouvir do que falar, principalmente quando o assunto era ele mesmo. Em várias entrevistas, quando convidado a contar sua história, o religioso, que conservava traços de timidez, economizava nas virtudes, atribuindo a Deus todos os créditos de sua obra. Entre suas qualidades mais lembradas pelas pessoas próximas, a atenção e disposição em ouvir os fiéis estão sempre entre as mais destacadas.
Vocação
A vocação para o sacerdócio, segundo ele, começou ainda na infância, em Minas Gerais. “Desde a infância eu dizia ‘vou ser padre’, eu já aspirava à dedicação ao sacerdócio. Naquele tempo, havia um padre que era o capelão das religiosas, que tinham um colégio em Juiz de Fora. Todos os dias, eu ajudava nas missas celebradas por ele. Estava já naquele tempo me dedicando à vocação para o sacerdócio. Tão pequeno, mas já estava dedicado ao sacerdócio. E com 12 anos eu entrei no seminário, em 1945”, contou em entrevista para a Pascom de Londrina, em 2017.
Ordenação de Geraldo Magella
Já em São Paulo, em 29 de junho de 1957 foi ordenado presbítero, aos 23 anos, por Dom Antônio Maria Alves de Siqueira, na Catedral Metropolitana de São Paulo. A história de outro cardeal, dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, teve fundamental importância na vida de Agnelo. “O cardeal Motta (arcebispo de São Paulo, à época) era verdadeiramente um pai. Ele é quem devia me ordenar, junto com mais três outros sacerdotes. Mas, naquele dia ele estava de cama. Ele pediu ao bispo auxiliar que presidisse a ordenação. Mas, na hora da ordenação, o cardeal apareceu e ficou lá na estala dos cônegos, na catedral de São Paulo. Ele foi por minha causa, ele me queria muito bem. Ele foi para mim um verdadeiro pai. Viajei com ele muitas vezes. Tínhamos uma convivência muito boa”, contou à Pascom.
De lambreta por São Paulo
Os primeiros anos de sacerdócio em São Paulo foram marcados pelo trabalho em um seminário de vocações tardias, na Freguesia do Ó. Na entrevista, Agnelo lembrou que ele e um outro padre percorriam de lambreta aproximadamente 6 quilômetros entre a Freguesia do Ó e a Paróquia Santo Antônio, na Barra Funda, para celebrar missas. “Íamos todos os dias celebrar a missa de lambreta. Hoje em dia, nem pensar uma coisa dessas em São Paulo”, ponderou.
Após alguns anos na função, ele foi enviado à Aparecida e, em seguida, seguiu para estudos na Itália. “Tudo, naquela época, era diminuto em Aparecida. Eu fui, trabalhei lá, no seminário. Mais tarde, estudei Liturgia, em Roma, no Santo Anselmo. Toda semana, eu falava para a Rádio Vaticano sobre Liturgia”, lembrou.
Bispo no Paraná
Após os estudos, Geraldo Magella foi ordenado bispo em 6 de agosto de 1978, pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo metropolitano de São Paulo e irmão de Zilda Arns. “Eu trabalhei muito com ele. Éramos muito unidos”, recordou-se. No mesmo ano, foi nomeado para assumir a Diocese de Toledo, no Oeste do Paraná. “Fui o segundo bispo, sucedendo dom Armando Cirio. Interessante que naquele tempo tínhamos um encontro toda semana, eu e dom Armando. Uma coisa muito fraterna, mesmo. Ele, bispo de Cascavel, à época. Isso foi muito marcante para mim. Dele guardei uma lembrança muito carinhosa. Em Toledo, fiquei quatro anos”, contou.
Arcebispo em Londrina
Após a passagem pelo Oeste do Estado, dom Geraldo Magella assume, em 1983, a Arquidiocese de Londrina, sucedendo a outro dom Geraldo, o Fernandes. O vigor da cidade o impressionou. “Londrina já era uma grande cidade. Foi muito interessante a diferença em relação a Toledo. Mas como em todas as minhas nomeações, nunca discuti ou perguntei, simplesmente fui. E aqui encontrei um povo que me acolhe muito bem”.
No mesmo ano, ele e Zilda Arns criaram a Pastoral da Criança. “Montamos juntos todo o projeto. A proposta foi assumida com muito carinho em cada lugar onde foi apresentada. Depois, foi se espalhando pelo Brasil inteiro. Eu tive a oportunidade de acompanhar, indo aos mais distantes lugares do País, para visitar, para conversar com os bispos. Realmente, foi uma benção de Deus essa Pastoral da Criança. Fui colocado neste trabalho por indicação de Dom Paulo, representando depois a pastoral diante do episcopado, na CNBB”, avaliou.
Roma e João Paulo II
Os anos 1990 começaram; hora de dizer adeus a Londrina. Em 1991, Dom Geraldo Magella recebe o “convite” para trabalhar no Vaticano. “Me comunicaram que eu iria para o Vaticano. Foi sem aviso: ‘vai e pronto’. Não tinha muita escolha”, contou sorrindo durante um evento organizado por entidades de classe de Salvador, já em 2011.
No Vaticano, permaneceu entre 1991 e 1999. Ocupou a função de secretário da Congregação para o Culto Divino e disciplina de sacramentos. “O Vaticano é interessante, tem várias congregações. A gente toma consciência de como a Igreja está pensando todas as questões. Eu tinha contato com muitos bispos. Afinal, todos os bispos do mundo vão a Roma a cada cinco anos, para apresentar o que tem sido feito em suas dioceses. Eles vinham visitar a Congregação. Tínhamos contato com o mundo inteiro”, contou à Pascom.
Sobre o papa João Paulo II (1920-2005), canonizado em 2014, dom Geraldo o define como “uma pessoa extraordinária”. “Estive muito próximo dele. Semanalmente, eu me encontrava com o Papa. Ele gostava de se encontrar com os bispos das congregações. Ele nos recebia para almoços, nos quais discutíamos temas. Dele sempre recebi apoio”.
Bahia de todos os santos
Durante os anos 1990, a Igreja Católica promoveu esforços contínuos para melhorar as relações ecumênicas. A experiência no Vaticano com o tema foi de grande valia para dom Geraldo Magella enfrentar sua nova missão. Em 1999, o cardeal foi denominado Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil.
Houve quem duvidasse das habilidades de dom Geraldo para conduzir a igreja na primeira capital do país em meio às diferenças culturais e o sincretismo religioso, uma vez que o perfil do cardeal sempre foi mais contido e sereno. No entanto, a relação com as “comunidades”, como ele definiu, referindo-se aos diferentes movimentos de religiões de matrizes africanas, sempre ocorreu com harmonia e respeito.
A mais preocupada com a mudança drástica foi a londrinense Julia de Lourdes Bianconi, funcionária leal de dom Geraldo, com quem trabalhou por quatro décadas. “No começo eu estranhei muito. Era tudo muito diferente. A comida, os costumes. Mas no final, foi uma boa experiência. Pude constatar como é importante ser um bispo na Bahia, a importância que eles dão”, relatou em entrevista à Rádio Alvorada, de Londrina.
Permaneceu em Salvador por 12 anos. Durante este período, teve papel importante para a canonização de Irmã Dulce, a primeira santa brasileira. Também presidiu a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre 2003 e 2007. Ressentiu-se apenas de não ter conseguido entregar a reforma da Catedral Basílica de Salvador, que só seria concluída em 2018.
De volta a Londrina
Dois anos antes da renúncia do papa Bento XVI, em 2013, ele concedeu outro pedido de renúncia, o do cardeal dom Geraldo Magella. Já sentiu o peso da idade, o então Arcebispo de Salvador decide deixar e se mudar para Londrina, em 2011. Segundo ele, ficaria mais perto dos parentes em São Paulo.
O retorno a Londrina foi incentivado pelo Arcebispo à época, dom Orlando Brandes, que em seguida assumiria a Arquidiocese de Aparecida. Geraldo Magella se manteve ativo em celebrações de missas nos primeiros anos, porém conforme a saúde foi se deteriorando, passou a fazer as celebrações dentro de seu apartamento, no centro da cidade.

Morte
O quadro de saúde se agravou no final de 2022, quando sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), que culminou em sua morte, no dia 26 de agosto de 2023. A comoção foi grande. Fiéis fizeram missas a cada duas horas para se despedir do religioso. Várias autoridades, como o Papa Francisco e o presidente Luís Inácio Lula da Silva emitiram nota de pesar.

O corpo do religioso foi sepultado na cripta instalada sob o altar da Catedral Metropolitana de Londrina, conforme sua vontade expressada em carta. O caixão foi colocado na segunda das 15 gavetas da cripta, entre os corpos de dom Geraldo Fernandes e dom Albano Cavallin.

Da lista dos 24 cardeais brasileiros, são cinco mineiros, cinco catarinenses, quatro gaúchos, quatro paulistas, dois pernambucanos, um fluminense, um cearense, um alagoano e um potiguar. Porém, diante da acolhida e de sua ligação com a cidade, o mineiro dom Geraldo Magella Agnelo também é considerado um cidadão londrinense.