Os trilhos sobre os dormentes já gastos pelo tempo refletem os raios de sol de uma típica tarde de janeiro no Norte do Paraná. Ainda não é possível avistar o trem, mas o som inconfundível do motor da locomotiva, ao longe, prenuncia sua chegada. A cena que se repetiu por quase um século ao longo da estrada de ferro São Paulo-Paraná, no trecho entre Londrina e Ourinhos (SP), ganha, enfim, seu ato final no dia 15 de janeiro de 2024. É a última vez que os moradores da região vão ouvir o já melancólico apito do trem.
Em cada uma das dez cidades cortadas pela ferrovia, os moradores se reúnem às margens da linha para ver passar a composição de metal e fumaça puxada pela locomotiva vermelha com o logotipo da ALL, a América Latina Logística. Crianças curiosas e idosos nostálgicos compartilham o mesmo espaço, unidos por uma despedida coletiva que transcende o tempo. Tudo é registrado pelas lentes das câmeras dos smartphones.
Em Cornélio Procópio, principal cidade cortada pela linha do trem no Norte Pioneiro, o movimento começou tímido, com um casal em cadeiras de praia à espera do trem. À medida que a notícia ia se espalhando, a aglomeração ganhava mais gente. “As pessoas se juntaram, começaram a contar histórias. Foi muito bacana. Aí então chegou o trem, com o maquinista apitando, acenando. Foi emocionante”, relata o fotógrafo Gustavo Carneiro.
Emoção na despedida ao trem
Ele observa que a história da cidade se mistura com a memória ferroviária. “Aqui em Cornélio todo mundo tem uma história pra contar. Eu mesmo lembro de quando era criança e brincava vendo o trem passar”, lembra. E o gosto pelas composições ferroviárias atravessou geração. Ele conta que a filha, Amora, se emocionou com a despedida do trem. “Ela chorou bastante. Desde muito pequena ela já ficava feliz ao escutar o apito do trem. É uma perda muito grande pra região”, lamenta.
A questionável decisão da concessionária Rumo de suspender o transporte de cargas no trecho de 217 quilômetros decreta a extinção de um capítulo fundamental da história do Norte do Paraná. Sem a linha de ferro, não haveria o Norte Pioneiro como ele é hoje, nem mesmo Londrina, que penava com suas estradas lamacentas e atoleiros desafiadores. De sinônimo de progresso, a malha ferroviária nacional foi perdendo sua importância e, sem investimentos, viu seu imponente patrimônio se tornar obsoleto.
A história do trem se confunde com a do Norte Pioneiro. Colonizada por paulistas e mineiros, a região só ganhou impulso mesmo com a chegada da linha férrea. As cidades que abrigavam as estações experimentaram um surto de progresso muito maior do que as outras. Foi assim com Wenceslau Braz, criada em função da estação do Ramal de Paranapanema.
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Conta a história que as autoridades de São José da Boa Vista e de Tomazina acreditavam que a linha traria bandidos e gente de reputação duvidosa. Então, decidiram que o traçado passaria por um ponto equidistante entre as duas cidades. O resultado foi que as duas cidades mais antigas da região perderam importância para Wenceslau, que se tornou polo da microrregião.
Os três ramais
A história do trem no Norte Pioneiro se deu basicamente em dois ramais principais, o Ramal do Paranapanema, no sentido norte-sul, que ligava Ourinhos a Jaguariaíva, nos Campos Gerais; o Ramal São Paulo-Paraná, sentido leste-oeste, conectando Ourinhos a Cianorte (Noroeste), passando por Londrina. Por fim, um terceiro trecho, menor, funcionou na região para a exploração carvoeira. O Ramal da Barra Bonita e do Rio do Peixe, entre Ibaiti e Wenceslau Braz.
O primeiro deles, o do Paranapanema, marca o primeiro surto de desenvolvimento do Norte do Paraná. Surge para enfim conectar o Paraná do sul com o do norte, que tinha muito mais influência paulista do que paranaense de fato. A construção começa em 1912 e, três anos depois, tem o primeiro trecho construído, de Jaguariaíva a Calógeras, distrito de Arapoti.
As obras, porém, seguem em ritmo lento. Levam dezoito anos para serem concluídas em seus 152 quilômetros de extensão, o equivalente a 8,4 km de ferrovia construída por ano. Mesmo com os contratempos, a ferrovia coloca a região em evidência e a economia local ganha impulso. Bancos do Paraná chegam até Jacarezinho. Os ferroviários, conhecidos como ‘funcionários da rede’ têm participação ativa na vida econômica e social das cidades.
O último trem de passageiros do Ramal do Paranapanema rodou em junho de 1979. Os cargueiros perduram por mais duas décadas, até que em 2001 também foram retirados de circulação.
As minas de carvão
A geografia do Norte Pioneiro explica o sentido da primeira colonização ter se dado no sentido norte-sul. Elas acompanhavam o curso dos principais rios: Itararé, Cinzas, Laranjinha e Congonhas. A transposição era difícil e custosa. Mas a descoberta das minas de carvão a oeste, na região de Ibaiti e Figueira, atrai investimentos para a construção de pontes ferroviárias, como a do Cinzas, em Tomazina. Hoje, apenas os pilares resistiram ao tempo e podem ser vistos próximo ao Salto Santa Maria.
O ramal começou a ser construído em 1930, mas a exemplo do Paranapanema, tornou-se deficitário. Foi fechado em 1969 para trens de passageiros. A erradicação final veio em 11 de julho de 1975, tendo porém, sido o ramal o responsável pela fundação de alguns núcleos urbanos em seu caminho.
No trem com o futuro rei da Inglaterra
Em um segundo momento da colonização do Norte Pioneiro, Nos anos 1920, paulistas de Cambará resolveram empreender esforços e dinheiro na construção de uma linha férrea à oeste na porção mais ao norte da região, onde a terra era mais plana e mais vermelha. Porém, a colocação dos trilhos sobre os dormentes se dava em ritmo lento. É aí que surgem os ingleses com seu projeto de colonização, a Companhia de Terras Norte do Paraná.
De olho nas oportunidades além do Rio Tibagi, onde como dizia a propaganda, onde a terra era fértil e não havia saúvas, investidores ingleses liderados por Lord Lovat aportam dinheiro na ferrovia São Paulo-Paraná para que ela chegasse enfim em Jataizinho para a construção de uma ponte ferroviária sobre o Rio Tibagi.
Em 1931, a linha do trem que vinha de Ourinhos já atingia Cornélio Procópio. Em março daquele ano, os príncipes britânicos Edward e Albert, futuro Rei George VI, pai da rainha Elizabeth II, visitaram a região a bordo do trem do norte para acompanhar de perto os investimentos no empreendimento e para aplacar a curiosidade aventureira.
Em seu blog, o professor e pesquisador da história do Norte Pioneiro, Roberto Bondarik, conta detalhes desta visita. Vindos de Cambará, os futuros monarcas foram recebidos com pompas na estação de Cornélio. Um grande pórtico com a inscrição “Welcome” foi erguido para recepcioná-los. Assim como muitos patrimônios históricos, o marco se perdeu com o tempo.

“Depois de duas horas, retornaram à estação. Decidiram ir a pé até à ponta da linha, que estava no Catupiri. Quando lá chegaram, o príncipe, que era grande atleta, decidiu que voltaria correndo até Cornélio Procópio. Não adiantaram as afirmações da longa distância. O príncipe correu e chegou normalmente, dando provas de sua grande vitalidade. Carros foram improvisados para trazer os suarentos ingleses do Catupiri, pois eles vinham caminhando com dificuldades entre os dormentes e as pedras do leito da ferrovia”, relata Bondarik.
Abandono e prejuízo econômico
Desde os anos 1950, quando o governo de Juscelino Kubitschek priorizou o modal rodoviário em detrimento ao trem, o país assistiu ao desmonte do patrimônio ferroviário. Na Estrada de Ferro São Paulo-Paraná, a última viagem do trem de passageiros ocorreu em 1981. Aposta de solução nos anos 1990, as privatizações apenas aceleraram a precarização nos trechos considerados inviáveis.
A Estrada de Ferro São Paulo-Paraná liga dois estados que estão entre as maiores economias do país. Especialistas refutam a versão de baixa demanda, uma vez que o transporte de carga é o segundo mais barato, atrás apenas do marítimo. De acordo com funcionários sindicalizados da Rumo, o problema maior é o estado de conservação da ferrovia.
A linha de ferro, construída nos padrões antigos, em bitola estreita, também pena com a falta de manutenção. Em entrevista à Folha de Londrina, um maquinista contou que os defeitos obrigam a uma redução de velocidade de 30 km/h para 15 km/h, o que acaba por dobrar o tempo de viagem e reduz a competitividade.

Quem percorre as estações da Estrada de Ferro São Paulo-Paraná pode perceber o estado de abandono. A primeira estação no estado do Paraná, Marques dos Reis, distrito de Jacarezinho, próximo à divisa com Ourinhos, funciona como uma bifurcação da Sorocabana para os ramais São Paulo-Paraná e Paranapanema. Ao lado da antiga estação, um cemitério de vagões enferrujados toma conta do pátio de máquinas. A situação é semelhante nas estações seguintes.
Plano Nacional de Ferrovias
Em nota à imprensa, a Rumo pontua que a suspensão pode ser revista durante as discussões da renovação da Malha Sul, com o governo federal. O Ministério dos Transportes se prepara para lançar este ano o Plano Nacional de Ferrovias. Além do foco no transporte de passageiros, o programa também visa a reutilização de ferrovias de carga subutilizadas ou em mau estado para o transporte de passageiros, exigindo investimentos substanciais para sua recuperação e modernização.