Logo nas primeiras horas da manhã, quando abre a janela da casa no Jardim Guanabara, Marcos Antônio Yanes Cruz se depara com o imponente paredão de prédios do bairro vizinho: a Gleba Palhano, área nobre da zona sul com o maior crescimento vertical de Londrina. O skyline, motivo de orgulho para muitos londrinenses, chega a causar urticárias no descendente de espanhóis de 56 anos que encontra no mato o refúgio para suas angústias. O campo serve como antídoto para o estresse, veneno da cidade que quase o matou.
Ao acordar, não demora a dar partida em sua Caravan rumo a um rancho na Estrada do Limoeiro, distante 30 minutos do centro, onde transforma madeira e fibra de vidro em canoas. Das boas. A atividade, que começou despretensiosa, hoje se tornou profissão e diversão. É reconhecido pela Confederação Brasileira de Canoagem como o maior fabricante do Brasil, o que oferece a maior variedade de modelos. Como a letra do jingle publicitário do ProUni, do governo federal, Marcos “está bem, está zen”, mas nem sempre foi assim.
Até os 38 anos, o canoeiro trabalhava “nas coisas mais comuns do homem fazer”. Mantinha um escritório de representação comercial no centro de Londrina. De tão apertados, o nó da gravata e os compromissos profissionais, o coração de Marcos não aguentou. No verão de 1996, 30 dias na UTI e a recomendação expressa do médico para que ele parasse de trabalhar. O estresse, inevitavelmente, seria seu algoz. Sem expectativas, construiu sua primeira canoa e foi espairecer no Lago Igapó. Não demorou em aparecer o primeiro pedido. Um amigo gostou da brincadeira e fez a encomenda. Em cinco anos, Marcos já sobrevivia do hobby. Hoje se dá ao luxo de recusar pedidos.
Marcos não é do tipo que exibe os calos nas mãos com orgulho da labuta. Até porque não os tem. Não sente o menor receio ao dizer que não é chegado em trabalhar demais. “Prezo pela qualidade de vida. Dinheiro, não. Por isso estou vivo hoje”, comenta. No ano passado, a Canoa e Cia chegou a produzir 20 unidades por mês. Este ano, Marcos não quer ultrapassar o limite de oito. “Acendeu o sinal vermelho, não é isso que eu quero. Coloquei o pé no freio. Não quero trabalhar muito e não preciso de mais do que tenho”, afirma, defendendo a filosofia de vida com convicção. Com mais tempo livre, ele se dedica a pescarias e ao contato com a natureza.
Das bacias do Tibagi e Paranapanema, conhece cada nesga de rio: poços, bancos de areia, ilhotas, cachoeiras. De tanto singrar os meandros de águas escuras que serpenteiam a terra vermelha – os “rios de chocolate”, como definiram amigos europeus ao verem fotos pela internet – enjoou. “Já bati demais essa região, agora quero conhecer novos horizontes”, planeja.
Com a chegada dos filhos Lara, de 6 anos, e Vinícius, 3, Marcos e a mulher, Adriana, deram uma pausa nas viagens. Agora, com os meninos já crescidos, querem fazer ao menos três “expedições” por ano. “Convite não falta. Quando o destino é atrativo fazemos a entrega das canoas e ficamos uns dias no lugar”, conta.
‘Nunca aceitei essa palavra: sobrevida’
Marcos Antônio Yanes Cruz é paulistano apenas no RG. Nasceu no bairro do Tatuapé, na capital paulista, mas com três semanas de vida mudou-se para Londrina. Ele sente falta da Londrina que conheceu na infância. “É uma cidade que não existe mais. Do Guanabara pra frente era tudo sítio, tinha uns carneiros comendo na beira do pasto. Prefiro olhar e sentir Londrina daquele jeito”, recordou.
O gosto pela terra herdou do avô. Quando desembarcou em Santos (SP), o patriarca espanhol iniciou uma plantação de banana. “Na verdade ele achava que estava indo para a Argentina e parou aqui. Creio que os hermanos selecionavam o nível para entrar lá”, brincou.
Quando passou por cirurgias no coração, os médicos lhe garantiram que se ele seguisse as recomendações, teria uma boa sobrevida. “Nunca aceitei essa palavra: sobrevida. Ou você vive com qualidade ou não vive”, defende. “Não me rendi às limitações da doença. Os médicos falavam de restrição de peso. Pra mim, restrição de peso é o que eu aguento levantar.” O cigarro e o churrasquinho durante intervalos no serviço são prazeres da vida que ele não abre mão. “Não há divisão entre trabalho e diversão aqui. Nem a gente tem certeza de quando está trabalhando”.
Além de Marcos, a equipe é formada pela mulher Adriana, responsável pelo financeiro, e pelo único funcionário, Felipe Carvalho, de 23 anos. Recentemente, o rapaz trocou a fabricação de joias para dar forma às embarcações. “Já falei pra ele que vai continuar mexendo com joias, só que maiores”, compara Marcos, sorrindo.
A empresa funciona em uma casa de madeira. No ateliê, Marcos fabrica seis modelos padrões de canoas que, dependendo de mudança de itens, podem chegar a 30 configurações. A mais vendida é a Cherokee Eletric, com guarnição para o motor de popa. “Eu falo para não comprarem esta porque não presta, mas o povo compra”, ironiza. A dose cavalar de sinceridade tem explicação: quem tem mais experiência prefere canoa com bordas mais baixas e com fundo abaulado como a Cheyenne. As com o fundo chapado, como a Cherokee, são indicadas para iniciantes, pois são mais difíceis de virar. “Eu não quero uma canoa que não vire, eu quero uma canoa que eu não deixe virar. Isto é o que preconiza a tradição indígena”, explicou.
O prazo médio de envio das encomendas é de aproximadamente 15 dias. Os preços variam de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil conforme o modelo. Uma de suas canoas foi exportada para Zurique, na Suíça. “Minha pista de teste é o Rio Tibagi. Pura pedra. Então elas aguentam porrada mesmo”, garante.
Depois de quase duas horas de entrevista, quando a equipe de reportagem já entrava no carro para ir embora, Marcos fez a única recomendação: “Viu, se possível não dê muito destaque para a parte comercial. Já tenho muitas encomendas e não aguento mais trabalhar tanto”, despediu-se.